segunda-feira, 5 de julho de 2010

Contributo para a reconstituição histórica das origens remotas do culto na capela de Nossa Senhora da Misericórdia

1-Santuário de Nossa Senhora da Misericórdia

2- Fonte de Mor

3- Brasão da Fonte de Mor (invertido)
Falar de Gonçalo e dos Gonçalenses no Século XXI impõe, incontornavelmente, que se fale do culto mariano que encontra vivo eco na veneração da imagem de Nossa Senhora da Misericórdia que, citando a tradição oral popular, “mora ao cimo da Granja e no dia oito de Setembro linda festa se lhe arranja”.
Uma análise mais aprofundada da cultura religiosa Gonçalense permite-nos concluir que se trata de um povo em que o culto à Virgem Maria assume uma preponderância, aparentemente, inexplicável.
Comecemos pela análise dos mais importantes lugares de culto da Freguesia. No que respeita à igreja matriz, do Século XVIII, assume principal destaque a existência de um altar dedicado a Nossa Senhora do Rosário, de que ainda existem indícios de uma irmandade numerosa que se foi diluindo com o passar do tempo. Gonçalo é, desde há muitos séculos, orago de Nossa Senhora da Assunção e a Paróquia chegou mesmo a ser intitulada “priorado do padroado real”, no reinado d’El Rei D. José I (talvez, também, por ser freguesia de grande rendimento “uns anos por outros 100.000 reis”, tal como é referido nas Memórias Paroquias de 1758).
Gonçalo pertenceu, como é sabido, ao termo do Concelho de Valhelhas até à sua extinção na primeira grande reforma de reorganização do território nacional, em 1855.
Da primeira carta de foral concedida a Valhelhas pelo Rei D. Sancho I, em 1188, não consta qualquer referência ao lugar de Gonçalo, mas antes sim, ao lugar de “Outeiro”.
O topónimo “Gonçallo” surge pela primeira vez inscrito na segunda carta de foral concedida à vila de Valhelhas, em 1514, pelo Rei D. Manuel I, referindo-se o “lugar de Gonçallo”, mencionado, aliás, em inúmeros documentos entre 1582 e 1689.
Só em 1758, nas respostas do Prior António Rodrigues Leitão ao inquérito que El Rei D. José I mandou difundir pelo Reino, na tentativa obter informações pormenorizadas de todo o país para servirem de base à redacção de uma História de Portugal, promovida pela recém criada Academia Real da História e com o intuito de melhor avaliar a dimensão do terramoto de 1755[1] (um inquérito de 27 questões sobre cada Paróquia) surge, pela primeira vez, uma referência concreta relativamente à existência da Capela de Nossa Senhora da Misericórdia.
Trata-se, evidentemente, de uma referência a uma capela cuja edificação teria sido muito anterior à data que, actualmente, consta na porta principal (1807).
Desvendamos, pois, neste ponto, a nossa primeira curiosidade. Terá existido uma capela dedicada a Nossa Senhora da Misericórdia antes da construção que, actualmente, ali encontramos? Pela análise da resposta do Prior de Gonçalo, relativamente ao número de locais de culto existentes no lugar, podemos afirmar com exactidão que, cerca de cinquenta anos antes da actual capela ser edificada, já existia “fora do lugar” um local de culto onde era venerada a imagem de Nossa Senhora da Misericórdia.
“13-Tem cinco capelas: uma do Espírito Santo, outra de São Sebastião, outra de São Marcos, outra de São Tomé e outra da Senhora da Misericórdia. As quatro primeiras estão quase dentro do lugar, e a última dista deste lugar quase meia légua (…)”[2]
Numa investigação recente das actas da “Junta da Parochia de Gonçallo”, a propósito de um acto eleitoral para a Junta da Paroquia no Século XIX, concretamente, um acto eleitoral realizado em 29 de Janeiro de 1858, o Professor António Amaral concluía, após a sua leitura:

“Gonçalo era uma Freguesia rural com muitos jornaleiros, alguns proprietários e também muitos cesteiros. O dinheiro escasseava e, por isso, os lugares de assalariados da Junta da Paroquia eram muito disputados, daí a enorme influência do Presidente da Junta (Pároco).
Existiam cerca de 15 pessoas que recebiam anualmente por serviços prestados à Junta. Era o caso da figura do Ermitão que era nomeado no mês de Outubro, habitava na Capela de Nossa Senhora da Misericórdia e não lhe era permitido, nesse período, o contacto com mulheres. A capela ficava sob a sua inteira responsabilidade, bem como os seus pertences. Nessa altura co-habitavam, em Gonçalo, quatro sacerdotes: o Reverendo Manuel Antão, o Reverendo António Rabasco Gouvea, o Reverendo Joaquim de Almeida Calheiros e o Reverendo José António Alves.”[3]

O facto da existência da figura do Ermitão na capela de Nossa Senhora da Misericórdia é, já por si, revelador da importância que este espaço de culto tinha para a Freguesia de Gonçalo em 1858, meio século após a edificação da capela, actualmente existente, nas Quintas de Nossa Senhora da Misericórdia.
À medida que vamos recuando no tempo em busca de pequenos fragmentos de história, teimamos sempre em querer ir mais longe, rebuscar as fontes mais remotas que nos permitam preencher um quadro cujas peças se encontram espalhadas pelos anais da História, mas que nem sempre encontram na documentação escrita a plena reconstituição de factos e acontecimentos que a memória da gente desta terra vai fazendo perpetuar.
Tinha eu cerca de 14 anos de idade, já lá vão outros tantos anos, quando numa das noites quentes de verão ouvia, atentamente, as memórias da Ti Gertrudes Pereira de Matos que morreu, recentemente, com 102 anos de idade. – Foi minha avó que me contou – dizia-me ela. E nessa noite fiquei a saber das grandes disputas de território entre Gonçalo, Valhelhas e Seixo Amarelo e que envolviam, incontornavelmente, a imagem de Nossa Senhora da Misericórdia e a localização da sua capela.
Dizia-se, pois, que há muitos anos houve uma grande divergência entre os habitantes de Valhelhas, de Gonçalo e do Seixo Amarelo.
Todos disputavam a pertença da imagem de Nossa Senhora da Misericórdia, como falso pretexto para ampliação do seu domínio territorial. A desavença ganhou tamanha dimensão que terá obrigado o caso a julgamento em tribunal.
Os habitantes do Seixo Amarelo reivindicavam para si a imagem de Nossa Senhora da Misericórdia alegando que quando a imagem de Nossa Senhora caminhava em direcção ao Carvalho Santo, ela caminhava em orientação ao Seixo Amarelo e não a Gonçalo.
Os habitantes de Valhelhas argumentavam que o facto da imagem de Nossa Senhora caminhar na sua direcção no regresso do Carvalho Santo lhes conferia o direito de pertença alienável.
Perante tão acérrima disputa, o povo de Gonçalo apresentara a seguinte argumentação ao juiz: - Como pode a imagem de Nossa Senhora da Misericórdia ser pertença de Valhelhas ou do Seixo Amarelo se ela lhes vira as costas em cada ano que passa? - É que ao entrar de costas na igreja matriz de Gonçalo, cuja porta principal é voltada a poente, vira as costas às terras do Seixo Amarelo e ao entrar de costas na capela das Quintas, cuja porta principal é (inexplicavelmente) voltada a nascente, vira as costas ao povo de Valhelhas. Entre os seus movimentos está, o seu olhar maternal, sempre volto para o povo de Gonçalo.
Em face de tão consistente argumentação, dizia-me a Ti Gertrudes de Matos, que o juiz concedeu a vitória aos Gonçalenses. Mas com um voto de condição: Nunca poderia a imagem de Nossa Senhora da Misericórdia quebrar este ritual anual de voltar as costas aos dois povoados vizinhos.
Não podemos, pois, perante tão valioso testemunho oral, deixar de atentar num pormenor importante que, por momentos, nos faz pressentir veracidade e coerência neste conto de longínqua memória.
Efectivamente, na argumentação, supostamente, apresentada pelo povo de Gonçalo é realçado o facto de que a porta principal da capela de Nossa Senhora da Misericórdia é voltada a nascente.
Se atentarmos na grande maioria das igrejas e capelas existentes em Portugal, facilmente, podemos concluir que, por norma, a porta principal dos templos cristãos é voltada a poente. Impunha-se que, em cada celebração da Eucaristia, o celebrante estivesse voltado para o oriente (nascente), voltado para a Cidade Santa do Sacrifício de Cristo. Ora, antes do Concilio Vaticano II, os sacerdotes celebravam a Eucaristia de costas para a assembleia e, por conseguinte, de costas para a porta principal do templo que ficava, obrigatoriamente, virada a ocidente (poente).
Acontece, porém, que a porta principal e a fachada da capela de Nossa Senhora da Misericórdia estão voltadas para nascente, o que pode justificar, não só a argumentação que perdura na tradição oral popular e a que se fez alusão, anteriormente, como também pode acentuar a tónica de divisões e disputas territoriais. Não podemos e nem devemos menosprezar o facto de que a capela de Nossa Senhora da Misericórdia se situa na extremidade da Freguesia de Gonçalo, bem próxima do ribeiro de Mor, que estabelece a fronteira entre Gonçalo e Valhelhas. Este facto, só por si, já é justificação suficiente para que se tivessem colocado de parte as normas correntes da edificação dos templos cristãos daquela época e se edificasse uma nova capela, concluída em 1807 (estilo D. João V, embora construída no reinado de D. Maria I) e com o seu portado principal voltado a nascente (à semelhança de templos anteriores?), o mesmo é dizer, voltado para o Carvalho Santo, voltado para Gonçalo.
Na verdade, a capela de Nossa Senhora da Misericórdia e o Carvalho Santo, já tantas vezes mencionado, estão, intrinsecamente, relacionados com a origem do povoado e do topónimo Gonçalo.
Adriano Vasco Rodrigues é de entendimento que o nome Gonçalo deriva de Gonçallo Peres, Mestre da Ordem de Alcântara, a quem pertenceu, até ao Reinado de D. João I, o termo do Concelho de Valhelhas. (em 1778 o termo do Concelho de Valhelhas pertencia ao Conde de Castelo Melhor).
Já, Moisés Espírito Santo reconhece no Carvalho Santo a verdadeira origem do topónimo.
Segundo o mesmo autor, o nome da povoação (Gonçalo) deriva do nome «carvalho», que foi objecto de oráculos.
O Carvalho Santo, situado na antiga porta principal de entrada na povoação, é o local onde começam e terminam as procissões de Nossa Senhora da Misericórdia.
No entender do autor, o carvalho poderia ser o próprio juiz e testemunho de contratos e de alianças – “gzy âllon [gozêialon] ou gzyn lalu [gozienlalu] ‘obséquio/culto do carvalho’, ‘venerando carvalho’.
Trata-se, efectivamente, da tradução de vocábulos que integravam uma língua, essencialmente, oral que hoje conhecemos pelo nome de ugarítico e que foi idioma do norte de Canaã (Fenícia), a região contígua da Ásia Menor e da Mesopotâmia.
Esta língua dos Cananeus foi decifrada a partir de uma grande colecção de tabuinhas de argila escritas em caracteres cuneiformes, num alfabeto tão original como desconhecido até aos meados do Século passado.
Deve-se a Bauer, Virolleaud e Dhorme o mérito de terem decifrado, cada um por si, e, simultaneamente, a partir de certas analogias com o hebraico e com o acadiano, a língua semita ocidental mais antiga que se conhece, e que, como não teve tempo de sofrer alterações, manteve certas formas primitivas que apenas substituem em estado de reminiscência nas outras línguas semitas;[4]
O ugarítico deriva do topónimo “Ugarit” que era uma Cidade Estado de cujo nome já existiam referências nalguns espólios Egípcios.
Esta Cidade Estado desenvolveu intensas relações políticas e económicas com todas as potências do Médio Oriente Antigo, durante vários milénios, tendo sido um grande centro cosmopolita e um porto de grande importância.
No Século XVI a.C. Ugarit conheceu intensas actividades industriais, mercantis, marítimas, políticas e religiosas.
Entre 1600 a.C. e 1100 a.C. constituiu o eixo de todo o tráfego marítimo e mercantil entre o Mediterrâneo e o interior, Mesopotâmia, Arábia e Pérsia.
Para os especialistas, o ugarítico é «irmão» do hebraico, do aramaico e do acádico, pese embora, com uma estrutura bem mais arcaica do que o hebraico, algures entre o hebraico e o acadiano. Trata-se, pois, de uma forma arcaica do hebraico antigo que chegou ao nosso conhecimento através da Bíblia. [5]
Ora, os nomes destes idiomas costumam suscitar certas confusões para aqueles que não sejam familiarizados com as línguas semitas, os idiomas chamados hebraico, aramaico, ugarítico e acadiano que são variantes de uma língua semita antiga que se dispersou em dialectos.
Assim, a partir do Dicionário de Expressões Populares Portuguesas, de Guilherme Augusto Simões[6] conjugado com o glossário de Del Olmo Lete[7] parece poder tornar-se possível a tradução de alguns vocábulos, frases e transcrições.
É, pois, com base nestas premissas de carácter linguístico (fonético e fonológico), que Moisés Espírito Santo fundamenta uma teoria sobre as origens remotas do lugar de Gonçalo e, concretamente, sobre o local onde hoje se encontra edificada a capela de Nossa Senhora da Misericórdia.

Em “Fontes Remotas da Cultura Portuguesa”, obra em cuja fotografia da fonte de mor foi colocada na capa e contracapa, o autor desenvolve um raciocínio em que tenta reconstituir um culto pagão, existente nas dobras da serra de mor, que denomina de “Marialvismo Lusitano” e que descreve da forma seguinte:

«Mor é o nome de toda a encosta da Serra que continua na Serra da Moura ou Mora:

mhr – ‘dote’ – ‘vigor sexual masculino’.

Uma visita ao local fez-nos descobrir uma interessantíssima relação entre a toponímia e uma série de costumes aí existentes.
Em frente à capela de Nossa Senhora da Misericórdia, sobre o ribeiro de mor, existe uma fonte encimada por uma pedra em forma de brasão dividido em dois sectores; um comporta seis falos esculpidos, com testículos; o outro sector contém a expressão MARIA AVÉ (…)
O brasão emblema está bem conservado mas não podemos precisar a sua época: talvez do período Renascentista, copiada de outra.
Note-se a inversão MARIA AVE em vez de Avé Maria, pormenor sobre o qual os habitantes nada dizem.
MARIA AVE é um decalque de mhr aby [mor aby] – ‘vigor paternal’/ ‘vigor ancestral’»

Nos mitos de Ugarit, traduzidos por Del Olmo Lete, descreve-se, efectivamente, um ritual de acasalamento junto dos templos dos deuses da fertilidade, pedindo-lhes que agissem contra o deus da esterilidade.
Talvez com base na leitura destes rituais, Moisés Espírito Santo, tenha tentado estabelecer uma relação entre a liturgia desses actos e a toponímia local (tentando, por exemplo, retroverter esses nomes encontrados na toponímia local para ugarítico).
O termo “Misericórdia” parece ganhar, neste contexto, um lugar de destaque. Segundo o autor “Nossa Senhora da Misericórdia” é um decalque de miseru Kort – ‘território separado’, ‘separação do Corte/acordo’, pelo que, a Senhora que reside na capela desse lugar é objecto de um culto que deriva de miseru Kort – ‘fronteiras divididas’, ou ‘fronteiras contratadas’, ‘acordo de fronteiras’.
Efectivamente, a imagem de Nossa Senhora da Misericórdia nos dias 7 e 8 de Setembro atravessa, aparentemente, dois territórios, saindo da sua capela nas Quintas para a igreja matriz de Gonçalo, repousando, naturalmente, aos pés do Carvalho Santo.
Moisés Espírito Santo define este movimento anual como sendo uma travessia de dois territórios em que o Carvalho Santo surge como “meio caminho”.
Parece-nos, no entanto, que a divisão de territórios no que respeita a Gonçalo e Quintas de Nossa Senhora da Misericórdia não faz muito sentido, uma vez que ambos constituem área de jurisdição do mesmo lugar “Gonçallo” (o que já se verificava em 1758)[8].
Moisés Espírito Santo, na sua abordagem, identifica o local onde se localiza a capela de Nossa Senhora da Misericórdia como sendo “Sitio do Pacto”, local de estranhos rituais associados à fertilidade.
Identifica, mesmo, a fonte de mor, como sendo a “Fonte da Fertilidade” e faz uma análise do brasão que está colocado sobre a fonte, destacando a inversão de “Ave-maria” e apontando essa inversão como sinal de presença de culto pagão e de superstição.
Ao mesmo tempo que apresenta alguma indefinição acerca da hipotética data do brasão, vai apresentando essa bela peça como premissa maior da sua teoria de que o local é espaço de um milenar culto ligado ao “pacto social” que poderá ter sido estabelecido entre diferentes povos ou clãs.
Nesta procura incessante de todas as pistas que nos conduzam à verdadeira origem do culto no local onde foi edificada a capela de Nossa Senhora da Misericórdia, tentámos explorar, ao máximo, todas as pistas. Confesso que chegámos a ponderar poder concluir que toda a argumentação de Moisés Espírito Santo nos conduzia a um caminho certo.
No entanto, porém, numa análise pormenorizada à fonte de mor constatou-se que o brasão que a compõe não parece constituir uma peça integrada na construção, antes sim, uma peça acrescentada a posteriori.
A par desta verificação e depois de uma análise detalhada ao brasão, podemos concluir, facilmente, que ele parece estar colocado na fonte de forma invertida. Na realidade e como se trata de um brasão (ou parte de um brasão), dificilmente, apresentaria a forma como pode ser visto, actualmente, sendo que, o ponto mais agudo da escultura deveria ficar (por regra) virado para baixo, à semelhança de tantos outros brasões.
Ora, confirmando-se a veracidade deste argumento, podemos contestar a existência de uma inversão do termo “Ave-maria” e, consequentemente, a ligação da fonte e do local a quaisquer tipos de práticas relacionadas com cultos pagãos ou superstições.
Chegados a este ponto do nosso estudo, parecem subsistir duas teorias.
A de um local de culto milenar ligando o espaço a um tempo que remonta a cerca do ano 1000 a.C. e a um estádio da evolução de uma sociedade que se regia por pactos socais e contratos familiares, pedindo aos deuses, por meio de estranhos rituais, o dom da fertilidade.
Ou, então, a teoria de que o local é, efectivamente, um espaço de culto e de grande devoção mariana que encontrou eco junto do povo de Gonçalo e cujo sentido do sagrado determinou que aquele espaço fosse, ele mesmo, um espaço de fronteira, um espaço sagrado que serviria, para lá do tempo como marca de partilha de um território que só conheceu efectivas fronteiras após a reforma administrativa de 1855.
Sabemos, hoje, pela leitura das Memórias Paroquias de 1758 que a Capela de Nossa Senhora da Misericórdia já se encontrava edificada nessa data.
Sabemos também, pela inscrição que se encontra na sua fachada principal, que foi reedificada no Reinado de D. Maria I, em 1807, com marcas profundas de estilo arquitectónico do reinado de D. João V.
Quanto à passagem da imagem de Nossa Senhora pelo Carvalho Santo em cada ano, tal se deve ao facto de que, durante séculos, o carvalho santo foi guarda atento daquela que era a entrada principal de Gonçalo (entrada sul). Na verdade, não se conseguia entrar no lugar de Gonçalo pela zona da Gaia, tal como hoje é tão comum, uma vez que não existia a Ponte Românica na Ribeira, tendo apenas sido construída em 1912, sob a égide do Presidente da Junta José Chrisóstomo Frias Pinto (bisavô da Sra. D. Júlia da Cunha Leal) que chegou a ser vereador da Câmara Municipal da Guarda, desempenhando, posteriormente, altos cargos públicos no Distrito da Guarda.
Tais factos levam-nos a concluir que seria normal que o povo Gonçalense fosse receber a Senhora da Misericórdia (tal e qual como hoje) ao Carvalho Santo, porta de entrada no lugar.
Acresce tecer uma consideração acerca da descida pelo caminho do serzinho até ao Carvalho Santo. Efectivamente, esse caminho constituía o verdadeiro e único acesso da capela para Gonçalo, porquanto, não existia, ainda, a estrada pela zona do lagar e nem tão pouco a, hoje denominada, “Rua de Nossa Senhora da Misericórdia”, outrora apelidada de “Rua Nova do Almada” dava acesso para a zona do lagar (a rua seguia apenas do jardim até à ponta do solar da Família Cunha Leal).
Assim, a saída de Gonçalo para as Quintas de Nossa Senhora da Misericórdia fazia-se pela hortinha, passando, obrigatoriamente, pelo Carvalho Santo que vigiava, atento, não só a via para as Quintas, mas também o chamado caminho da “moura” que permitia a ligação (a sul) com o concelho de Belmonte. Esse caminho foi uma calçada de que ainda hoje, junto ao carvalho santo, se podem encontrar vestígios. A travessia da Ribeira era efectuada no limite da Freguesia de Gonçalo com a Freguesia do Colmeal da Torre, local onde existia um pontão em madeira que permitia, inclusivamente, a passagem de carros de bois.
Como bem referenciámos no início deste pequeno trabalho de investigação, no dia 8 de Setembro, comemora-se, em cada ano, a Festa de Nossa Senhora da Misericórdia.
Sem querer contrariar Moisés Espírito Santo no que respeita à sua interpretação de que a capela de Nossa Senhora da Misericórdia se encontra em local de divisão de território, o que aliás é bem sabido, gostaríamos, no entanto, de colocar em causa a sua teoria para o aparecimento do termo “Misericórdia”.
É nosso entendimento que o termo não deriva de ‘miseru Kort’, mas antes sim da junção de dois outros termos latinos:
1- miser, era, erum, adj. – ‘infeliz’, ‘desgraçado’, ‘aquele que sofre’.
2- cor, cordis, n. – ‘Coração’, ‘ser do agrado de alguém’, ‘ser agradável a alguém’.
Trata-se portanto da junção de dois termos latinos que formam o vocábulo:
Misericórdia, ae, (misericors), f. ‘compaixão’, ‘piedade’, ‘ser tocado pela compaixão’.


Foi, de facto, este sentimento de “ser piedoso para com aqueles que são tristes ou para com aqueles que sofrem” que inspirou nos Gonçalenses a tradição de celebrar a Virgem Santa Maria na sua invocação de Mãe de Misericórdia no dia 8 de Setembro, que constitui, já por si, uma importante data do calendário litúrgico católico e do calendário mariano.
Parece-nos, este pormenor, importante factor de análise na cultura de um povo que possui uma tão grande devoção mariana.
O dia 8 de Setembro não é mais do que o dia da Natividade de Nossa Senhora, é a festa de seu nascimento. Esta Festa é celebrada desde o início do cristianismo, no Oriente. E no Ocidente, desde o século VII. (eis, portanto, uma data importante a reter)
A existir uma data para o início de uma tão profunda devoção popular, o seu início apenas poderá ser contabilizado depois do século VII d.C.

Termino com um breve excerto de um sermão do Pe. António Vieira no dia do Nascimento da Mãe de Deus:

"Perguntai aos enfermos para que nasce esta Celestial Menina. Dir-vos-ão que nasce para Senhora da Saúde; perguntai aos pobres, dirão que nasce para Senhora dos Remédios; perguntai aos desamparados, dirão que nasce para Senhora do Amparo; perguntai aos desconsolados, dirão que nasce para Senhora da Consolação; perguntai aos tristes, dirão que nasce para Senhora dos Prazeres; perguntai aos desesperados, dirão que nasce para Senhora da Esperança; os cegos dirão que nasce para Senhora da Luz; os discordes: para Senhora da Paz; os desencaminhados: para Senhora da Guia; os cativos: para Senhora do Livramento; os cercados: para Senhora da Vitória. Dirão os pleiteantes que nasce para Senhora do Bom Despacho; os navegantes: para Senhora da Boa Viagem; os temerosos da sua fortuna: para Senhora do Bom Sucesso; os desconfiados da vida: para Senhora da Boa Morte; os pecadores todos: para Senhora da Graça; e todos os seus devotos: para Senhora da Glória (…)[9]

E se perguntarmos aos Gonçalenses?
Certamente responderão que nasce para ser Senhora da Misericórdia que, de braços sempre abertos, e de olhar maternal:
“Esta Divina Senhora,
Que aos filhos enxuga o pranto,
Da capelinha onde mora,
Abençoa a toda a hora,
O povo que a adora tanto.”
Marcha de Gonçalo

Pedro Pires

(Texto proferido por ocasião das Comemorações do Segundo Centenário da Edificação da Capela de Nossa Senhora da Misericórdia em 19.08.2007).

Notas:
[1] Do inquérito constavam 27 questões sobre cada Paróquia, tendo sido enviado pelo Ministério do Reino, por ordem de D. José I, a todos os Bispos e outras autoridades eclesiásticas o pedido de colaboração por parte dos Párocos.
[2] CHORÃO, Maria José Bigotte, Memórias Paroquiais – 1758, Ed. C.M.G, 2002
[3] In Jornal “Voz de Gonçalo”, Ano XXXVI, Fevereiro de 2003.
[4] Cfr. EDMOND, Jacob, Ras Shamra et l’Ancien Testament, Delachaux e Niestlé, Neuchântel, 1960, p. 36.
[5] Cfr. ANDRÉ CAQUOT e MAURICE SNYCER, Textes ougaritiques, Le Cerf, Paris, 1974, p.42.
[6] Cfr. SIMÕES, Augusto Guilherme, Dicionário de Expressões Populares Portuguesas, Perspectivas & Realidades, Lisboa, 1984
[7] Cfr. G. Del Olmo Lete, Mitos y leyendas de Canaan, según la tradicon de Ugarit, Ediciones Cristiandad, Madrid Valência, 1981
[8] Vide “Memórias Paroquiais – 1758”
[9] Apud José Leite, S. J., op. cit., Vol. III, p. 33.

1 comentário:

  1. Também refere Moisés Espirito Santo nas suas "Fontes Remotas da Cultura Popular Portuguesa" que o Carvalho Santo teria sido local de aplicação de leis e consequentes castigos...

    Ze Robalo

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